De coração em Portugal

Tuesday, June 20, 2017


A minha mãe é a Dalila e o meu pai é o Jorge. Nasceram os dois em Borbela, uma pequena aldeia perto do centro de Vila Real. Conheceram-se (era impossível não se terem cruzado naquela aldeia), apaixonaram-se, namoraram e casaram aos 19 anos. Na mesma altura começaram a construir, também em Borbela, naquela pequena aldeia cuja estrada principal foi alcatroada à meia dúzia de anos e cujas portas não tiveram nunca número, uma casa, a casa onde educaram três filhos. São três andares de compartimentos que foram ganhando forma e foram sendo adaptados a todas as crises de adolescência que eu e os meus irmãos fomos vivendo. Porque a casa é para ser vivida, não é um museu, disse sempre o meu pai. Mas não é só a casa. Pel’aquela rua principal abaixo tenho tios e primos que nunca mais acabam. “A tia do primo Zé que casou com a Maria de Fátima que cantava no coro da igreja com a nora do António que era manco e tinha aquela mercearia à beira do café onde íamos buscar pão Bimbo em dia de festa”. “Não sei quem é mãe, deixa lá”. Eu sou esta pessoa. 
Pela rua principal abaixo há família e há vida. Há gente que cresceu com os meus avós e carregou os meus pais ao colo. Há mulheres que amamentaram os filhos dos outros porque os outros não tinham leite nem alimento que chegasse para tantas bocas. Pel’aquela rua abaixo há um cuidar silencioso. 
Há oito anos fiz as malas e fui embora para Lisboa, ansiosa por viver outras coisas. Regressava duas vezes por mês para ter colo e para respirar aquele ar que não se respira em mais lado nenhum. Hoje estou na Austrália e aquela aldeia continua a ser a minha aldeia. O sítio onde aprendi que podemos ser princesas ao mesmo tempo que subimos às árvores ou jogamos à bola. 
Os meus pais, que cresceram, casaram, construíram uma casa, uma vida, criaram filhos ali. Os meus pais que regressaram àquele sítio ao fim de cada dia de trabalho. 

Não tenho conseguido parar de ler e de ver imagens sobre o que está a acontecer em Portugal. E se fosse com os meus pais? Como seria se eles perdessem tudo? Porque é isso que as pessoas – as que tiveram a sorte ou o azar de sobreviver – perderam. Tudo.
Há uma agonia que toma conta de mim quando penso que entre aquelas pessoas há histórias como as dos meus pais, pessoas que tinham em escassos metros quadrados absolutamente tudo o que tinham, décadas de vida investida e que para além desses metros quadrados pouco ou nada têm. 
Ou pessoas que escolheram aquele lugar para ser feliz, para educar os filhos, para amar, para viver. 

Não consigo imaginar a sensação que é apagar com as nossas próprias mãos as chamas que estão a levar a nossa casa, a mesa onde todos os dias tomámos o pequeno almoço, o cadeirão onde adormecemos tantas vezes o nosso neto. Não consigo imaginar a sensação que é apagar – ou tentar – com as nossas próprias mãos as chamas que estão a levar a pessoa com quem partilhámos tanto amor, os filhos sem os quais não vamos saber viver, os avós que tanto amor nos deram. 
Não consigo imaginar o que é acordar de manhã com tudo e passado umas horas não ter nada e desejar ter ido também com as chamas. Como é que se vive depois disto? Depois de se perder os filhos, de se perder os pais, de se perder a pessoa que amamos, de se perder a casa onde sempre vivemos, depois de se perder tudo?
Também não consigo imaginar o que é acordar de manhã para salvar vidas numa luta sem fim, mesmo que isso implique pôr em risco a sua própria vida. 

Tenho tendência para questionar sempre a mesma coisa quando estas catástrofes acontecem: que Deus é esse o vosso que permite que estas coisas aconteçam? E vocês respondem-me que Ele tem um plano. E eu volto a questionar: que Deus é esse o vosso, que é tão cruel?

Estar longe é ser impotente. Porque fazer transferências bancárias para a corporação dos bombeiros ou pedir à mãe que vá entregar donativos por nós parece não ser suficiente. O meu pequeno coração sofre porque queria estar lá a fazer de alguma maneira a diferença que é possível fazer neste momento. A fazer qualquer coisa. 

Não, não vai ficar tudo bem porque acontecimentos levam mais do que deixam e não se reaprende a viver sem metade do coração. Por agora é resistir e lutar, porque dizem que a vida faz sentido e merece ser vivida.


(There is no translation for this post, but I promise I'll fix that soon)


love,
C.

You Might Also Like

0 comentários

Fala Comigo!

Name

Email *

Message *